Elio Gaspari
A cada dia que passa e o estádio olímpico
do Engenhão continua com o nome de João Havelange, o prefeito do Rio, Eduardo
Paes, confirma as palavras dos advogados da Fifa no processo que tratou do
capilé de US$ 14 milhões recebidos pelo doutor e por Ricardo Teixeira:
"Pagamentos de subornos pertencem ao salário recorrente da maioria da
população na América Latina e na África".
Havelange e Teixeira receberam, mas a
galera que vai aos estádios e elege prefeitos leva a fama. A exposição da
malfeitoria, 13 anos depois das primeiras denúncias, mostra que os subornos,
quando rolam no andar de cima, são protegidos por um sistema de salvaguardas
especiais.
No caso da dupla, a blindagem funcionou na
própria Suiça, pois as principais acusações surgiram em 2006. Havelange foi
protegido ao limite do possível. Ele dirigiu a Confederação Brasileira de
Desportos de 1956 a 1974 e a Fifa de 1974 a 1998, quando foi aclamado seu
presidente honorário, título que ainda mantém.
Afora isso, foi membro do Comitê Olímpico
Internacional e fez Ricardo Teixeira, que era seu genro, presidente da
Confederação Brasileira de Futebol. Os dois saíram de fininho no ano passado,
quando a magistratura suíça já estava atrás de suas contas.
Aos 96 anos, Havelange ensinou:
"Difícil na vida não é chegar, é saber sair. Tem que sair bem". Ele
construiu seu verbete na história do esporte brasileiro e destruiu-o na saída.
Charmeur irresistível e grosseirão inesquecível, "nosso querido
Havelange" (nas palavras de Lula), encantou governantes e ajudou atletas
colocando-se ora como patriarca onipotente, ora como cortesão maltratado.
Quando Pelé o contrariou, disse: "Dei
todas as atenções e fiz gentilezas a esse moço". No ano passado, a doutora
Dilma tomou-lhe o passaporte diplomático, e ele lamentou-se: "Eu merecia
isso? É isso que dói, este é o meu país".
Havelange e Teixeira encarnaram a
transformação do futebol num empreendimento bilionário. Em 1958, quando o
ex-sogrão trouxe a primeira Copa do Mundo para o Brasil, o goleiro Gilmar
ganhou uma bibicleta e um terno. Hoje os craques pilotam Ferraris.
Há patrocinadores para atletas, clubes,
seleções e Copas e se isso ajudou a profissionalizar o esporte, serviu também
para montar propinodutos e lavanderias de dinheiro.
A rede de interesses criada pelo progresso
deu à cartolagem oportunidades para a delinquência e fez da Fifa uma central de
negócios, ramificada em donatarias nacionais.
A presença da empreiteira Delta na
construção de estádios para a Copa de 2014 é um solene indicador dos perigos
que rondam a festa.
Até bem pouco tempo, Joseph Blatter,
presidente da Fifa (secretário-geral ao tempo de Havelange) comportava-se nas
negociações com o Brasil como se fosse chefe de Estado, manipulando a síndrome
de "vira-latas" dos burocratas com quem tratava.
O ocaso de Havelange deveria levar o
prefeito Eduardo Paes a aceitar uma disputa com a Fifa. Ganhará quem chegar
primeiro: os cartolas suíços extinguindo a presidência honorária da instituição
ou o doutor, trocando o nome do Engenhão.
Se o prefeito entregar a escolha do nome
do estádio à galera que o frequenta, mostrará que "pagamentos de
subornos" não "pertencem ao salário recorrente da maioria da
população" do Rio.
Publicado na Folha de S.Paulo e
em O Globo, em 18/07/2012.
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