quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Quando o Corinthians jogou em Yokohama





Quando amanheceu o dia no Brasil, já era noite na terra do sol nascente. Estávamos acordados, fiéis e loucos, lá e cá. Ou melhor, onipresentes, como um todo-poderoso. Assim como em 1990, quando Tupãzinho empurrou a bola de carrinho, 16 de dezembro seria, mais uma vez, dia de glória. Naquela época, diziam sermos incapazes de ultrapassar os limites do estado; até há alguns meses, asseveravam que jamais transporíamos as fronteiras do país. Quebraram a cara antes, repetiram a dose agora. Éramos a piada e viramos o paradigma.

Quando o Corinthians jogou em Yokohama, sabíamos que o Chelsea jogaria no 4-2-3-1. Eles, coitados, desconheciam nossa alternância do 4-4-2 para o 4-3-3, somando 30 mil na arquibancada e outros 30 milhões nas casas, bares, padocas e onde mais houvesse uma TV ligada. Era muita desproporção a nosso favor, mesmo se considerarmos os tantos milhões de euros ingleses, ou melhor, russos. Já tivemos a lição de que grana não é tudo. Obrigado, professor Kia Joorabichian, nosso ex-Abramovic. Maior patrimônio é o que temos: a massa disposta a sofrer e a lutar, sem parar. Torcida que, qual tsunami, invadiu o Japão, assim como já fizera em 1976. Para quem pensava que o Rio de Janeiro era perto demais, percebeu que o Japão, para nós, também é logo ali. Yokohama, Maracanã, Morumbi: fazemos de qualquer lugar um grande Pacaembu.

Quando o Corinthians jogou em Yokohama, nem todos o viram, mas ali estava Ronaldo Fenômeno, no mesmo gramado em que outrora brilhou com a amarelinha. Estavam, ainda, Rivellino, Sócrates, Teleco, Cláudio, nossas vidas, nossa história e nosso amor. No impecável gramado nipônico sobrepuseram-se o chão da Fazendinha, o terrão da zona leste, os tijolos da arena em construção, a várzea onde Neco brincava, o solo do Bom Retiro sob os pés de cinco iluminados operários. A propósito, se nascemos à luz dos lampiões, hoje nos veem sob a luz dos holofotes de todo o planeta.

Quando o Corinthians jogou em Yokohama, ao seu lado adentraram jogadores de uniforme azul. Olhando bem, os uniformes também eram verdes, tricolores e até alvinegros, de outra estirpe. Cech, Lampard, Hazard e Torres eram, ao mesmo tempo, “são” Marcos, Ademir, Raí e Pelé, unidos para que o mundo não fosse nosso uma vez mais. Só que, vestidos de azul, os algozes de outrora não repetiram seus feitos. Secaram a mais não poder, em vão. Do mesmo jeito que, dias antes, fracassaram na tentativa de fazer do Al Ahly um novo Tolima.

Junto a Ralf e Paulinho estavam Rincon e Vampeta, Elias e Cristian, a garra de Biro-Biro, Wilson Mano e Ezequiel. Danilo armou jogadas à la Zenon, deu passes como Neto, confiante como Marcelinho. Fábio Santos foi combativo, raçudo: estavam consigo Wladimir e Zé Maria. Luizinho, o pequeno polegar, esteve representado pelo também pequeno, nem tão habilidoso, porém incansável, Jorge Henrique. Nosso intelectual Paulo André mostrou a inteligência do seu amigo, nosso eterno Doutor, e a segurança de Gamarra. Só Alessandro e Chicão entraram em campo como eles próprios: os bravos capitães da nave que partiu do fundo do poço da segundona para chegar ao céu sem limites do mundo. Tite, que não é Osvaldo, nem Brandão nem de Oliveira – também não é Menezes, ainda que, com certeza, um genuíno mano –, mas Adenor, o professor que ensina seus comandados a namorar e a jogar com “incansabilidade”.

Diferentemente da Libertadores, desta vez Sheik não estava endiabrado como um Edílson, nem Romarinho foi um talismã como Dinei. Nem precisaram, pois, desta vez, o protagonismo coube a Cássio: o gigante fez o primeiro milagre com o reflexo empresado por Gilmar; quando fez o segundo, assumiu a destreza de Ronaldo Giovanelli; quando fez o terceiro, já canonizado, era o próprio Dida defendendo o pênalti de Anelka.

O gol aconteceu no segundo tempo, igual a outro, também fadado a morar eternamente em nossos corações. Como em 1977, quando Basílio resvalou de cabeça na área, assim o fez Jorge Henrique. Aquela bola sobrara para Vaguinho; esta, a Paulinho. Na sequência, Danilo chutou e, como a trave de outrora, Peter Cech fez a pelota e a sina caírem na cabecinha de ouro de Guerrero, redivivo Baltazar, gringo como Carlito, oportunista como Luizão, Casagrande e Geraldão. Como se a cabeçada de Wladimir não tivesse sido interceptada, o dejá-vu nem chegou ao chute fatal de Basílio para que o grito de gol ecoasse neste e no outro lado da Terra, eternizando a imagem da bola a passar o muro vazado de Ashley Cole, Ramires e David Luiz. Quase reprodução do quadro em que aos pobres Carlos, Polozi e Oscar, caídos no chão, só restou lamentar o cumprimento do destino.

Logo após, vi Guerreiro correr em direção à torcida, ao mesmo tempo em que Chicão mordia o escudo, Marcelinho girava os braços, Rivellino gritava, Sócrates erguia o braço e cerrava o punho, Tevez dançava cumbia, Romeu dava cambalhota, Ruço jogava beijinhos, Neto deslizava de joelhos, Dentinho beijava os pulsos e o Fenômeno balançava o indicador, na falta de um alambrado para se jogar.

Quando Alessandro levantou a taça, repetindo o gesto da conquista recente da América, ali estavam William em chamas, Rincon vociferando palavrões e Gamarra com sua elegância guarani. A se lamentar, apenas a companhia de José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, filhotes de ditadura, posando na foto histórica do time do povo, em cuja camisa a democracia esteve tão dignamente estampada.

Quando o Corinthians jogou em Yokohama, estavam lá todos os corinthianos. Alguns milhares, de corpo presente. Outros milhões, em pensamento e emoção. Outros tantos, incontáveis, que sequer residem mais neste planeta ora conquistado por sua nação alvinegra: não estão aqui fisicamente, muito embora estejam na paixão legada a filhos, netos, bisnetos ou amigos, tornados loucos no imenso bando. Representantes de um povo sofrido, nem tanto hoje como no passado. Povo em ascensão, Obamas da ZL a descobrir que, sim, nós podemos. Povo que não pode mais ser visto, a não ser sob a incurável dor de cotovelo da rivalidade doentia, como torcedores de um timinho sem glórias sediado na Marginal sem número. Perdoem-me os coirmãos: hoje, o discurso rancoroso e pseudo-elitista só evidencia o temor de que esse time se torne potência globalizada. E, quem sabe, assim será. Afinal, aqui é Brasil e aqui é Corinthians!

De qualquer forma, apesar de tudo, pode até ser que continuem a nos ver como um time menor. Nas suas palavras, um time de favelados, de desdentados e analfabetos. Isso pouco importa, pois não é assim que nós nos vemos. E, quem sabe, talvez não seja assim que o mundo nos veja, pelo menos desde que o Corinthians jogou em Yokohama.


***

Agradeço a São Jorge pelo ano maravilhoso de 2012. Ano em que superamos o Santos de Neymar, o Boca de Riquelme e o Chelsea do dinheiro. Ano em que conquistamos a América e o mundo. O mesmo mundo que, ironicamente, acabaria em 2012, assim como deveria ter findado em 2000. Conclusão lógica: sempre que o mundo está para acabar, fica tão feliz com a vitória do Corinthians que continua a existir. Somente um todo-poderoso para adiar o apocalipse.

JFQ

Um comentário:

  1. Texto emocionante! Como negar a onipresença do legado corinthiano? Mais do que nunca, fomos Corinthians! Orgulhosamente, Corinthians!

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