segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Bellini e a menina

Ruy Castro


Em julho de 1958, uma menina de 10 anos, sofrendo de poliomielite desde bebê, fez sua primeira cirurgia na perna. Enquanto convalescia, montou um álbum de recortes sobre seu ídolo, o homem mais bonito do Brasil, o xodó de todas as mulheres, crianças e até avós: Bellini, zagueiro do Vasco e capitão da seleção brasileira recém-campeã do mundo na Suécia. Certo dia, a porta da casa onde ela morava com sua família no Leblon se abriu, e uma visita de surpresa disse: "Boa-noite". Era Bellini.

Como? Simples. Alguém que conhecia alguém que conhecia Bellini falou-lhe da menina. Bellini tinha 28 anos e não chegava para as encomendas. Quando não estava treinando ou jogando pelo Vasco, tinha de viajar com a Copa do Mundo pelo país e levantar o caneco em festas e banquetes. Mas ele achou tempo para ver a garota, que ficou muda de emoção enquanto ele lhe contava histórias da Suécia.

Dois anos depois, em 1960, a menina encontrou Bellini na rua, em Copacabana. Ele a reconheceu e ela lhe disse que, no dia seguinte, iria fazer sua segunda (e última) cirurgia. Bellini se interessou. Dali a dias, ligou para o hospital para perguntar como estava. Ao saber que brevemente ela iria para casa, deu um tempinho e foi visitá-la de novo, desta vez levando bombons. Era assim que ele era.

Passaram-se anos. Celia se tornou a violonista, arranjadora e maestrina Celia Vaz, uma das musicistas mais completas do Brasil e com sólida reputação no Japão, na Europa e nos EUA, muito maior do que em seu país.

Sábado último, após intermediação de amigos, Celia foi a São Paulo para encontrar Bellini e sua esposa Giselda, dar-lhe um beijo e retribuir os bombons. O intervalo de mais de 50 anos -o próprio Bellini tem hoje 81- não impediu que a emoção desandasse e as lágrimas de todos descessem pelos rostos e sobre o estojo da Kopenhagen.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/08/2011.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Gente humilde

José Roberto Torero


Abastada leitora, abestado leitor, alguns dias atrás resolvi fazer um programa de rico.

Não, não fui passar o fim de semana em Paris, nem passear de iate entre as ilhas de Angra.

É que, como estava em Curitiba, resolvi assistir ao jogo entre Atlético-PR e Corinthians e, para meu azar, só havia o mais caro dos ingressos, que custava a bagatela de R$ 150.

Então, já que teria que quebrar meu porquinho, resolvi fazer a festa completa. Fui e voltei de táxi, almocei na excelente churrascaria que fica dentro do estádio e comprei uma camisa na loja oficial. No total gastei mais de R$ 400. Quatrocentos!

Ainda não conhecia a Arena da Baixada e fiquei surpreso. É realmente o melhor estádio do Brasil.

Acomodações confortáveis, boa visão de campo e uma infraestrutura excelente.

Quantos aos torcedores endinheirados de meu camarote, devo dizer em sua defesa que vibram a contento. Aquela ideia de que só os fiéis de baixa renda têm amor real pela sua equipe é um preconceito tolo. Rico também tem coração. E de vez em quando o usa.

Pois bem, pensando em números, vi que minha cadeira estofada custava o mesmo preço de uns cinco assentos nas arquibancadas. Ou seja, o clube ganhava com a minha presença, o mesmo que com cinco torcedores normais. Mas tinha um gasto cinco vezes menor.

Quando comecei a frequentar estádios, ainda existia a geral, que hoje custaria algo como R$ 10. Você ficava de pé e a visão era muito ruim, mas qualquer pé-rapado podia ver o jogo. Porém, atualmente, não existem mais gerais. A elitização do torcedor de futebol é um fato. E nada indica que vá diminuir. Pelo contrário, a classe média invadiu os estádios. E a alta está chegando.

Por conta disso, creio que, se Chico e Vinícius escrevessem hoje os versos alexandrinos de "Gente Humilde", talvez eles fossem assim:

"Tem certos dias em que eu penso em minha gente/ E sinto assim todo o meu peito se apertar/ Porque me lembro num susto, bem de repente,/ Que eles não têm um camarote pra sentar./ Penso nisso quando eu passo no subúrbio,/ Eu muito bem, vindo de táxi ou avião/ E aí me dá como uma pena dessa gente/ Que vê o jogo narrado pelo Galvão./ São casas simples com cadeiras na calçada,/ E na estante uma TV sem pay-per-view/ Pela varanda flores tristes e baldias/ Como o torcedor que mais um jogo não viu./ E aí me dá uma tristeza no meu peito/ Feito um despeito de eu não ter como lutar/ O futebol abandonou a minha gente/ É gente humilde que nem pode mais gritar."

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/08/2011.

A fase anal do poder

Xico Sá


Amigo torcedor, amigo secador, na minha mania de Freud de botequim, refletia, com os cavalheiros da távola redonda, ainda sobre essa história, repetida ad nauseam, da oratória suja do senhor Ricardo Teixeira, o tutacamon da CBF.

Isso mesmo. Recapitulávamos a oralidade do mandatário, especialmente o episódio do "montão" de dejeto humano que diz despejar sobre a cabeça dos jornalistas que teimam em revelar o óbvio sobre o seu mandato perpétuo.

Não seria, amigo, manifesta confissão de quem não conseguiu ultrapassar a tal fase anal, a que se passa ali entre os dois e os quatro anos de idade?

A diferença, recorrendo à sabedoria do Dr. Sigmund, é que, no caso do cartola, talvez haja noção clara e consciente da sujeira que se pratica dentro de casa. Não existe, porém, a menor possibilidade de evolução para distinguir o sujo do mal-lavado, principalmente quando o assunto é dinheiro.

No pobre diagnóstico de boteco, também concluímos que o apego do dirigente à sujeira evita o famoso "tchau" que o pirralho dá às fezes durante a citada fase freudiana. A pequena criatura se orgulha de fazer cocô no lugar certo, mas se despede da sujeira.

Com o mandatário do futebol verde e amarelo, o desejo manifesto, a tomar pela sua oralidade, é emporcalhar os supostos adversários, como a imprensa que se rebela diante dos seus podres.

Dá para viajar um montão na leitura, com toda licença aos profissionais do divã, da fala ricardiana. Provavelmente outras interpretações bem mais humoradas e inteligentes aparecerão amanhã à tarde na avenida Paulista, local da marcha "Fora Ricardo Teixeira".

Uma coisa que não tem faltado a essa rapaziada que protesta nas ruas é juntar humor e política. Talvez acreditando no velho ditado latim "Ridendo castigat mores", ou seja, rindo corrigimos os costumes.

Tomara que a frase, citada de "O Carapuceiro" -jornal recifense da primeira metade do século XIX- ao grande esculhambador-geral José Simão, faça todo o sentido do mundo nos próximos meses. Só, assim, quem sabe, o alvo da passeata perca a sua garantia até a próxima Copa.

Sonha, meu filho, sonha, como dizia minha santa mãezinha dona Maria do Socorro. Sonha, meu filho, pois sonhar ainda é de graça aqui na serra do Araripe. Motivo é o que não falta para ir às ruas, ainda a mais eficiente das redes sociais da humanidade, e dizer um montão para o cara.

@xicosa
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/08/2011.