Demora uns 15, 20 minutos até ela
aparecer. Esse é o tempo, imagino, gasto na minuciosa pesquisa: sempre que a
bola sai pela lateral, que um jogador cava uma falta, enquanto o goleiro toma
distância para bater o tiro de meta, ele vasculha a arquibancada, um olho no
campo e outro no zoom, a procurá-la. Talvez fique em dúvida entre a loira de
top na numerada, a morena de piercing junto ao alambrado, a ruiva girando o
rabão de cavalo no tobogã. Lá pelo meio da primeira etapa, contudo, já chegou a
um veredicto, e, quando o jogo é interrompido por alguma razão e o
comentarista, num raro momento de iluminação, emudece, eis que surge, pinçada
do meio da massa amorfa e catapultada para as televisões do Brasil: a gostosa
do câmera.
Por alguns segundos, todos se esquecem do
jogo, do time, da tabela e se concentram na brejeira musa dominical, que,
ignorando 80 milhões de olhos, segue enrolando uma mexa de cabelo, cantando
"Timão, ê, ô!", roendo a unha do dedinho. Em algum lar, uma mãe estará
gritando: "É a Kelly! Nestor, é a Kelly!". Perto dali, talvez, um
garoto endireite-se na cadeira de latão: "Aí, Rodriguêra, não é aquela tua
prima gostosa?!", e Rodriguêra, surpreso, forçando a vista: "Cara, só
é!". Aqui em casa, toda vez que a moça invade a TV, há também um
movimento: "Aí está ela!", penso, e sorrio satisfeito.
Se digo "a moça" é porque, entra ano, sai ano, o biótipo da eleita não muda -e a constância de seus traços, ou, mais precisamente, de seus contornos, talvez seja a primeira razão da minha felicidade. Mudam os jogadores, os presidentes, a temperatura global, as alianças dos políticos e o sabor dos sorvetes, mas a gostosa do câmera continua igual: fornida, cabelos longos, unhas pintadas. Vá lá: vulgar, no sentido mais puro da palavra, o que pertence ao vulgo, ao povo, pois é isso que ela é, o paradigma da beleza nacional.
Se a primeira razão da minha alegria é a permanência dos contornos, a segunda é o contorno, em si; essa desbragada voluptuosidade. Pois mesmo com o poderoso lobby da anorexia e seu ossudo ideal de beleza, que bombardeia as meninas desde o berço, a libido brasileira ainda se move em direção à fartura. A natureza, que via nas curvas a reserva de alimento necessária para nutrir os descendentes em épocas de escassez, ainda vence o marketing, com suas mulheres desnatadas. O mundo caminha para uma triste assepsia, um raquitismo carnal e anímico, mas sangue corre nas veias daquela garota, há ali vida e vontade de potência.
Por último, mas não menos importante, me empolgo com a gostosa do câmera simplesmente porque ela é do câmera. Num espetáculo que movimenta milhões de reais, em que há gigantes da propaganda disputando cada segundo e cada centímetro do estádio, este soldado raso do exército televisivo, com um desejo na cabeça e uma câmera nas mãos, é quem elege a Miss Arquibancada, que, por três segundos, provocará milhões de brasileiros.
Ao ver aquela moça ali, saltitando, anacrônica e contente, semana após semana, acredito que nem tudo está dominado. "No pasarán!", penso, enquanto ela passa em minha TV -e me alegro pela existência do futebol e seus contornos.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 11/07/2012.
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