terça-feira, 1 de março de 2011

Toque de Letras

O escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto no último domingo, era torcedor do Cruzeiro de Porto Alegre.
Abaixo, texto de Scliar que o jornal Zero Hora publicou no dia 22 de junho de 2010, após o retorno do Cruzeiro à elite do Gauchão:



Ser membro da Academia Brasileira de Letras é, naturalmente, uma distinção, mas tem os seus inconvenientes, como descobri na semana passada: tendo ido ao Rio para a reunião da ABL, perdi um acontecimento histórico: ao derrotar o Brasil de Farroupilha, o Esporte Clube Cruzeiro de Porto Alegre garantiu seu retorno à primeira divisão do futebol gaúcho, após 32 anos de ausência. Lamento que meu falecido pai, José Scliar, cruzeirista fanático (e um dos 18 torcedores que, segundo o folclore porto-alegrense, o Cruzeiro tinha) não haja vivido esse momento glorioso. Foi meu pai quem me introduziu ao futebol: eu tinha a paixão pelo Cruzeiro no genoma.

E tinha de ser uma paixão mesmo. A trajetória do Cruzeiro era um tanto desconcertante. Terceira força do futebol gaúcho, o azar no entanto nos perseguia. Mas, e isso ajuda a entender o “pathos” cruzeirista, não era um azar constante. De vez em quando, e da forma mais inesperada, o time ganhava de goleada, renovando nossa fé. Chegamos ao auge quando o Cruzeiro tornou-se o primeiro time gaúcho a excursionar pelo Velho Mundo, o que aconteceu duas vezes, em 1953 e 1960. Na primeira excursão, o Cruzeiro conseguiu até empatar com o Real Madrid e voltou com o autoatribuído título de Leão da Europa.

E aí vinham as surpresas desagradáveis. A última partida a que assisti, sempre ao lado do meu pai, foi realizada no estádio do time da CEEE, o Força e Luz, na Rua Alcides Cruz. Quem perdesse ficaria em último lugar. Mas, para o Cruzeiro, bastava um empate, e, quando terminou o primeiro tempo, estávamos ganhando de 3 a 0. No fim, perdemos por 4 a 3. Ao Cruzeiro, devo a inspiração para A Colina dos Suspiros, livro destinado a jovens, que foi traduzido em vários países. O título nasceu da localização do estádio do clube, que ficava na Colina Melancólica, ali onde estão os cemitérios porto-alegrenses.

Convenhamos que não era um lugar muito alegre, e o estádio acabou sendo vendido para o Cemitério João XXIII. O clube recebeu parte do pagamento em jazigos perpétuos, que valiam uma soma apreciável e foram usados na compra dos passes de jogadores. Quando ouvi um desses jogadores dizendo, na Rádio Gaúcha, e com muito orgulho, que seu passe havia sido adquirido por seis túmulos, dei-me conta de que aquele era o time ideal para um ficcionista, e a partir daí nasceu a história.

Agora, o Cruzeiro mostra sua bravura, retornando à primeira divisão. Nas palavras de Jayme Sirotsky, presidente emérito da RBS, o time, como a mitológica fênix, renasceu das próprias cinzas. E tenho certeza de que, assim fazendo, inspirou nossa seleção na vitória sobre Costa do Marfim. “Se o Cruzeiro pode, nós também podemos”, deve ter dito Dunga. Viva o Cruzeiro.

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