segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O sonho, a realidade, o sonho

Barcelona 4x0 Santos
Barcelona campeão mundial 2011

Desde 2010 espera-se com ansiedade por esse jogo. Não apenas a torcida da Baixada e a da Catalunha, mas todos os amantes do futebol bonito, bem jogado: o futebol-arte, enfim. Na equipe cuja camisa já foi vestida por Cruyff, Maradona, Romário e Ronaldo, ora Messi faz as vezes de gênio. Na famosa equipe da não menos famosa Vila, veste a onze o menino Neymar.

Em 2010, o Santos encantara o universo ludopédico com um time de garotos – mais um! –, sob a batuta de Dorival Jr. e a liderança do ex-garoto Robinho. Entre os meninos da nova geração, Wesley, André, Zé Eduardo, PH Ganso e Neymar. Pode-se dizer que este Peixe vinha de um embalo nascido em 2002, com o Brasileirão ganho a pedaladas de Robinho, arrancadas de Diego e broncas de Emerson Leão. Mas, para mim, tornou-se um Santos melhor, mais brincante, mais alegre: tinha o espírito da dancinha. Sob a égide da vaidade, aflorada pelo “não” à cobrança de um pênalti – ainda nos tempos da paradinha –, Neymar xingou e derrubou Dorival. O técnico caiu e, com ele, começou a cair o consenso em torno daquele jeito dançante de se jogar. Veio o consagrado Muricy e houve quem louvasse o equilíbrio trazido pelo professor. Agora, sim, o Santos era um time seguro na defesa e não só (não só?) brilhante na arte de costurar defesas e marcar muitos gols. Prova do acerto: o bicampeonato paulista e, sobretudo, a Libertadores de 2011.
Em 2007, Josep Guardiola, vindo do time B, assumiu o comando do Barcelona. A equipe vinha no embalo da vitoriosa fase do técnico Frank Riijkaard. Contava com craques como Deco, Eto’o e Ronaldinho Gaúcho, e ganhara a Champions de 2006. Surpreendentemente, contudo, fora batido pelo Inter de Porto Alegre no Mundial do mesmo ano. Guardiola assumiu, despachou os figurões e prestigiou as pratas da casa e o estilo coletivo, de muito toque de bola. Um estilo tradicional do próprio Barça e – por que nos esquecemos? – que está no DNA do futebol brasileiro. Insistiu e gerou uma máquina de jogar bola. Assim, Messi, Xavi, Iniesta e companhia levaram o Barça a vários títulos, dentre os quais a Champions de 2009 e 2011, e ao primeiro mundial do clube. Muito além disso, levou a um time histórico, desses que se contam nos dedos e do qual se falará daqui a décadas.
Enfim, chegou o dia do jogo. O encontro do futebol bonito dos meninos do Santos contra o futebol-arte dos meninos do Barcelona. Que pode ser assim resumido: começa com o sonho santista em surpreender o todo-poderoso catalão; passa pela realidade de que o Barça, senão imbatível, é uma das melhores equipes de todos os tempos; e desemboca no sonho de que o futebol-arte, do qual sabíamos tudo e passamos a desprezar, pode ser o modus operandi em busca dos resultados. Como se não valesse a pena só pela beleza.
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Flamenco de uma nota só
Muitos acordaram sem a ajuda do despertador; a expectativa era grande. Os demais levantaram-se nervosos com o espocar dos rojões. Estes, na maioria, devem ter rogado pragas aos alegres torcedores santistas, empolgados com a possibilidade da terceira estrela mundial. Devem, inclusive, ter se juntado à torcida gringa. Não importa. O fato é que ninguém deveria mesmo ficar à parte do mais esperado acontecimento esportivo dos últimos tempos: o embate entre Santos e Barcelona, entre Neymar e Messi, entre o time do país do futebol versus o melhor time estrangeiro com cara de brasileiro do mundo (e um dos melhores de todos os tempos).
As escalações. Santos: Rafael, Danilo, Edu Dracena, Durval, Bruno Rodrigo (Três zagueiros? Que estranho!) e Léo; Arouca, Henrique, Elano e Ganso; Neymar e Borges. Barcelona: Valdes, Dani Alves, Piquet, Puyol e Abidal; Busquets, Xavi, Messi, Thiago, Fábregas e Iniesta (Sem centroavante? Ah, normal!).
Os times entram em campo e um mau presságio advém por duas razões. Primeiro, o semblante dos santistas é de extremo nervosismo. Segundo: para quem, como eu, esperava pela volta de Léo e por Danilo compondo um meio-campo marcador e, ao mesmo tempo, capaz de gerar contra-ataques, a formação de três zagueiros parece um tremendo tiro no pé. Como assim, professor Muricy? Nunca viu que o Barça toca a bola na boca da área adversária? Não percebe que zagueiros são pesados, que a marcação precisa ser mais leve e, de uma hora para outra, tornar-se ataque fulminante? Bem, talvez tenha sido uma impressão errada.

O juiz apita e começa o massacre, quer dizer, o jogo. Como todos já sabiam, o Barcelona toma conta das ações, não deixa o Santos tocar na bola, e parte para as ofensivas. Fui anotando: a bola sobra para Fábregas e o Peixe toma o primeiro susto; Messi dribla três e Danilo afasta; Daniel Alves cruza e Bruno Rodrigo cabeceia para fora; até os primeiros cinco minutos a câmera não filmou a cara de Valdes; Santos pega na bola pela primeira vez, tenta partir, mas a bola não chega à área adversária; Messi e Dani Alves trocam passes, perdem a bola, sobra para Borges que lança Ganso que lança Neymar que tenta o drible e perde (Danilo estava livre na direita); na volta, Messi e Thiago tabelam, este cai na área, mas o juizão nada apita; Bruno Rodrigo está bem na cobertura, Durval está perdido.
Momento da estatística: aos onze minutos, enquanto o Barça toca, toca, toca – seu belo flamenco de uma nota só – o narrador anuncia que até ali os espanhóis têm 74% de posse de bola. Ah, sério!
De volta à peleja. Fábregas surge novamente perigoso em frente a Rafael; Messi chuta de longe, Rafael rebate, Thiago aproveita, Rafael pega de novo: primeiro risco real; Santos aperta no ataque, Borges sofre falta, mas o Peixe não aproveita; Neymar carrega e é desarmado – Neymar está fominha como sempre, mas sem o mesmo brilho. Aí, o grande lance: numa bola espirrada pela defesa santista, Xavi, como um Zico, reafirmando seu status de craque, mata a bola de chaleira e empurra na medida para a entrada de Messi; o argentino, reafirmando seu status de gênio, dá um tapinha na redonda que cai no gol, perversamente desdenhando da tentativa desesperada e inútil de Bruno Rodrigo em chutá-la para cima. Barça 1 a 0, fora o baile: ducha de água gelada, como a temperatura no Japão.
Borges está a fim de jogo; o problema é o Neymar sem brilho, o Ganso sem bola no pé, os malditos três zagueiros e, claro, esse diabo de time da Catalunha. Vinte e dois minutos: nenhum esboço de reação santista, só toque, toque, toque... E gol! A bola sobra para Xavi que empurra para as redes. 2 a 0. Ainda dá? Nessa hora, o santista busca no mais fundo do seu íntimo extirpar os elementos de racionalidade e trazer à tona a esperança passional. Ora, se dá?! Aqui é Peixe!
E se repete o script. Edu Dracena chega na hora agá para impedir o gol de Messi. Não fossem as chegadas na hora agá, o placar já estaria nas nuvens. O Santos, quando pega, tenta o lançamento: convenceu-se de que não dá para sair no toque, exclusividade do adversário. Novo anúncio do narrador: 76% de posse de bola. Adivinhe para quem? E a marcação santista está embasbacada, estática, acuada, não se adianta para dificultar as ações do Barcelona. Verdadeira judiação! O Barça joga como quem brincasse em uma roda de bobinho.
Aos 44 minutos, um lance de pinball na área do Peixe. Toque de calcanhar de Messi, Dani Alves lança na área, Rafael defende, como Rodolfo Rodrigues defende mais uma, só que Fábregas não entende a analogia e marca no cantinho. 3 a 0. Parece um tsunami. Uma pelada da mais alta qualidade, de complexidade pós-shakespeareana. O Barça esbanja o espírito da dancinha, outrora especialidade dos meninos da Vila, que, caretas, exageram no respeito e o confundem com medo. Pavor!
Intervalo. Ufa! No segundo tempo será diferente, imaginam os santistas, embora já descartem uma virada (seria o maior feito da história do futebol!). Na volta, mais realidade: 40 segundos, o Barça rouba a bola e Fábregas só não marca outro porque Rafael tira com a ponta dos dedos. Reação: Ganso lança Borges na direita, que cruza e Neymar erra a cabeçada. Seis minutos: Messi sai costurando como de costume, como um Pelé nas imagens dos melhores momentos do rei, como Maradona no gol contra a Bélgica em 86 ou na malfadada jogada do gol de Caniggia em 90, e deixa Thiago livrinho para chutar e errar. Nova do Santos: Ganso joga para Elano que toca para Borges que não alcança. Boa notícia: o Santos adiantou a marcação, mudou a postura. Péssima notícia: o Barcelona continua igualzinho no primeiro tempo. Mas o negócio fica mais parelho; quer dizer, menos desigual.
Dez minutos: a intermediária brasileira abre espaço para Xavi – pecado mortal! – que toca para Iniesta que desperdiça. No minuto seguinte, Ganso, o sósia de Sócrates, honra a semelhança e dá um passe primoroso que deixa Neymar na cara de Valdes... bem, não era, definitivamente, o dia de Neymar. Novo contra-ataque santista (agora vai!): bola sobra para Elano que chuta, a pelota desvia para escanteio. Na cobrança, quase Borges aproveita a falha de Valdes. Dezoito minutos, Ganso “maestra” (enfim!) na intermediária adversária, mas erra o último passe.
Depois de um certo descanso, o Barcelona volta ao jogo. Messi sai costurando, é derrubado por Dracena que toma cartão amarelo. Dani Alves surge como um louco e carimba a trave de Rafael. Nessa toada de serial killer, o lateral brasileiro com camisa estrangeira deixa Messi na cara de Rafael, parece que não vai alcançar, mas, imitando o homem-elástico, chega antes para tirar do goleiro e dar o tiro de misericórdia. 4 a 0.

Fim de jogo, fim de pesadelo, fim de show: tudo depende dos olhos de quem vê. O time catalão comemora a conquista, para desgosto dos santistas, dos brasileiros solidários, dos amantes do futebol feio e dos muitos que continuam papagaiando que europeu não liga para essa coisa de mundial de clubes.
Resumo da peleja. Nessa roda de bobinho de um time só, ao ritmo de um belo flamenco de uma nota só – toque, toque, toque –, o resultado moral foi muito pior do que o placar: 4 a 0. Só.
***
O choro e a aula

O momento mais marcante para mim não foi nenhum dos quatro gols do Barça, nem qualquer brilhante jogada de Messi. Foi o choro de Neymar ao ser entrevistado após o término da partida. O choro refletia o choque da expectativa de glória com a realidade da derrota, resultando na sobriedade da lição. Foi um choro de gente que amadurece: triste, mas benéfico.
Com o microfone na boca e a lágrima nos olhos, Neymar afirmou com propriedade que tivera uma aula de futebol. Só que Neymar não aprendeu apenas a arte da bola – nisso, aliás, ele próprio é um dos maiores artistas do mundo –, mas sobre a arte de se tornar homem. O jogo serve a Neymar para aprender a domar a soberba que um dia o fez perder a linha, qual bebê mimado ou como se fosse o arrogante dono da bola, com seu treinador só porque o desautorizou a bater um pênalti. Como sugeriu o grande filósofo Sócrates, o Brasileiro, a vitória nos faz metidos, a derrota nos ensina. E olha que o Doutor se referia à derrota da mítica seleção de 82, o Barcelona da época, da qual fazia parte.
O Barça de Guardiola deu várias lições nessa partida. Ensinou que a base faz diferença. Que futebol é esporte coletivo. Que dá, sim, para vencer jogando bonito – arte e resultado só se excluem na cabeça de técnicos burocrático-bitolados; na dos criativos, complementam-se maravilhosamente. Que o melhor pode, sim, ser também o campeão.
O Barcelona também ensinou que time equilibrado não é necessariamente aquele que cuida do ataque e da defesa de forma compartimentalizada, podendo ser aquele que cuida de todos os setores só fazendo atacar e não deixando o adversário tocar na bola. Aliás, penso que o Santos de Dorival Jr. não era desequilibrado, como fizeram crer alguns comentaristas; só tinha um equilíbrio diferente, mais ousado e mais bonito que o equilíbrio trazido por Muricy. Ponto para reflexão: a maioria dos renomados técnicos brasileiros da atualidade continuam com o princípio de que primeiro se pensa na defesa, depois, no ataque. Como o Barça de Guardiola mostrou, pode-se pensar que ataque e defesa fazem parte de uma única ação – jogar e investir sem parar, ataca-se e não se deixa atacar.
Se aliarmos às lições um olhar sobre nosso próprio passado, veremos ainda que nada do que se assistiu em Yokohama nos é estranho. Para me limitar aos que vi: o Flamengo de Zico jogava assim; o São Paulo e, acima de todos, a seleção brasileira de Telê Santana também. A questão é: por que os técnicos brasileiros se convenceram de que nosso estilo não serve mais? Se gostam tanto de usar a Europa como paradigma, por que não notam que cada vez mais esse estilo vem se impondo, não só em Barcelona ou na Espanha, mas até na Alemanha de Joaqüim Law. Engraçado: até os alemães se convenceram de que é melhor jogar como brasileiros, que, ao longo dos tempos, vêm jogando como alemães.
Na mesma entrevista, Neymar também disse: perdemos para aprender a ganhar no futuro. Discordo em parte. Para mim, perdemos para lembrar como jogávamos e ganhávamos.
Do choro ao aprendizado, do aprendizado à aplicação. Sorriam, santistas: 2012 está aí! Aprendamos, brasileiros! 2014 também não demora.
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O novo Telê


Logo que chegou ao Japão, Muricy concedeu entrevista dizendo que Guardiola era um grande técnico, mas, para prová-lo de verdade, precisaria comandar um time brasileiro. Depois do jogo de ontem – ou mesmo antes –, alguém poderia dizer: Guardiola poderia treinar a seleção brasileira.
Vale lembrar que Muricy só não é o técnico da nossa seleção porque, ainda no Fluminense, ouviu a recusa do presidente do tricolor carioca em liberá-lo. Há poucos dias, renovou seu contrato no Peixe com cláusula que lhe permite a saída em caso de novo convite por parte da CBF.
Ainda que não me empolgue com o trabalho mostrado por Mano Menezes, não me iludo com sua eventual substituição por Muricy. Nem por Luxemburgo, nem por Felipão ou qualquer outro treinador brasileiro. Gostaria, confesso, que o técnico do Barça ou alguém que assuma sua filosofia de jogo tomasse em mãos o Brasil até 2014. Aliás, por ironia, Guardiola é o maior herdeiro de Telê Santana. Mais ainda que o próprio Muricy, que iniciou sua carreira com o mestre, no São Paulo.
Outra ironia: o futebol-arte, que Zico disse ser o maior derrotado no estádio de Sarriá naquela fatídica tarde de 14 de junho de 1982, pela Itália de Paolo Rossi, parece justamente estar renascendo na mesma cidade de Barcelona.
Se há a tristeza pela derrota do Santos, também há um quê de esperança pelo resgate do melhor do nosso futebol brasileiro. Ainda que nasça em terras catalãs sob a batuta de Pep Guardiola, o novo Telê.
JFQ

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