sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

À espera do número 257

Antonio Prata




 
Eu, no ano da graça de 1977, com apenas 49 dias de idade, vendo do berço o chute do Vaguinho explodir no travessão, Wladimir tentando de cabeça, Oscar salvando em cima da linha, Basílio pegando o segundo rebote e finalmente balançando a rede da Ponte Preta, acabando com quase 23 anos de sofrimento e me ensinando que a vida é dura, estranha, às vezes a coisa embanana ali na zona do agrião, mas no fim tudo pode dar certo; flashes do Pacaembu, poucos anos mais tarde, no colo do meu tio --cavalos, bandeiras, rojões--; o bigode do Zenon, o respeito imposto por aquele bigode, estendido a todos os bigodes subsequentes; o uniforme de goleiro igual ao do Carlos, ganho no Natal --e todas as vezes em que eu gritei "espaaaaaaalma Carlos!", jogando bola na rua ou no recreio, durante a infância--; a trave de madeira que meu avô fez para mim; Casagrande e Sócrates subindo ao palco num show da Rita Lee; meu pai pisando de leve no meu pé e piscando, no meio da torcida do Guarani, quando o Biro-Biro fez o gol lá no Brinco de Ouro da Princesa, em 1984; a agonia da final de 88, contra o mesmo Guarani, até o momento em que um moleque chamado Viola dá um carrinho de ninja, se estica todo e, com a ponta da unha do dedão, salva a pátria; eu, o Luiz e o pai dele numa Brasília estacionada num pasto, em algum lugar do Mato Grosso, tentando sintonizar o rádio para ouvir um Corinthians e São Paulo; o trator rebocando a Brasília atolada no pasto, duas horas mais tarde; o Nirlando, meu padrasto, me ensinando com sua agonia a dimensão trágica das batalhas ludopédicas; Kalunga, nome de um quilombo de bravos guerreiros, descendentes de negros e índios; a descoberta tardia da Democracia Corintiana, o orgulho pela Democracia Corintiana; eu, o Badá, o Miguel, o Perê, o Turco e o Binho subindo a Rebouças a pé, em 95, gritando "É campeão!", junto a um rio de gente, acreditando na concórdia entre as classes, as raças e religiões; eu, o Binho e o Perê às três da manhã, naquela mesma noite, na Paulista, fugindo de cinquenta corintianos, depois que um cara roubou o gorro do Binho e gritou "pega os são-paulinos!", nos mostrando que era preciso mais do que o futebol para superar as mazelas nacionais; Wladimir reunindo os garotos da rua, pegando meu primo pela mão e o levando para jogar bola, no dia em que o meu tio morreu; minha admiração por esse ato de generosidade e grandeza; a falta que faz meu tio-- são algumas das coisas que passam por minha cabeça quando o número 257 aparece no luminoso do Consulado Geral do Japão e me dirijo ao guichê para tirar o visto.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/12/2012.

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