quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tiranos dos estádios

Antero Greco



Vira e mexe, a tevê mostra torcedores com cartazes singelos, na base do “Mamãe, olha eu aqui”, “Galvão, me filma”, “Amor, te amo!” e coisas do gênero. Não faltam, também, imagens de crianças, senhoras, jovens a tomar sorvete. “As famílias de volta aos estádios”, exultam narradores empolgados. Uma impressão de ambiente descontraído, sereno, alegre e democrático. Certo? Errado.

Os campos de futebol tornaram-se lugar de autoritarismo, arbítrio, repressão. Sem espaço para democracia. Começa pelo clima tenso nos meios de transporte. O sujeito corre risco de linchamento, se cruzar com rivais, no ônibus, no metrô – ou a pé mesmo. Caminhar com camisa da equipe só em grupos, como as organizadas. Caso contrário, é colocar a cabeça a prêmio.

Depois, há a intimidação dos flanelinhas ou a ação escorchante de cambistas. No portão, se o guarda se invocar, o infeliz não entra nem com faixas engraçadas. E, se a fila demora a andar, pode ser atropelado por cavalos, nos sentidos literal e figurado. Lá dentro, arrisca-se a ver o cartaz confiscado, se o árbitro considerar que contenha frase ofensiva. Tem mais: o bolso lhe é tungado, se sentir vontade de comer ou de beber algo. E o nariz é aviltado, se usar o banheiro.

A maior afronta que sofre, no entanto, está na liberdade de torcer, de curtir o espetáculo, de aplaudir os ídolos, de exercer a cidadania pelo lazer. As arquibancadas pertencem a bandos de machistas, truculentos, de tiranetes que determinam como os outros devem comportar-se. E não necessariamente os “inimigos”; impingem regras despóticas para os seguidores de seu próprio time.
 

Os covardes se fortalecem sob a certeza da impunidade, escorados no famoso “não vai dar nada mesmo”, e não têm mais noção de dignidade. Exemplo chocante ocorreu no domingo, após o jogo em que o São Paulo empatou com o Coritiba (1 a 1), no Couto Pereira. O meia-atacante Lucas ouviu os apelos de uma fã, aproximou-se das arquibancadas e lhe atirou a camisa que vestia.

A adolescente Milenna, 13 anos, viveu naquela tarde momento inesquecível, para o bem e para o mal. Assim que agarrou o presente se viu cercada por brucutus irados, por acéfalos que a xingaram e ameaçaram. O pai, assustado, tentava dialogar com os estúpidos, apavorado com a perspectiva de ver sua menina agredida. A camisa tricolor foi jogada no fosso. A PM não interveio e Milenna conheceu a realidade das arquibancadas.

Impressionantes alguns desdobramentos do episódio. Nas redes sociais, não foram poucos os jovens a argumentar que a mocinha e o pai dela “vacilaram”. Postura de certa forma corroborada por Vilson Andrade, presidente do Coritiba. O dirigente afirmou, para a rádio CBN, que iria acionar responsáveis pelo incidente, “inclusive o rapaz (Lucas) que jogou a camisa”, como se no gesto delicado estivesse embutida hostilidade. Voltou atrás.

Fere saber que muitos entendam como lógica e normal a submissão à vontade das quadrilhas de boçais. Envergonha ler comentários de que estavam certo torcedores do Corinthians que exigiram a expulsão de um turista escocês, que no domingo foi ao Pacaembu ver o jogo contra o Sport com camisa do Celtic (verde e branca).

Acham natural que atitudes fascistas esmaguem o direito que temos de nos vestir como queremos, de nos divertirmos num campo de futebol. Pessoas assim também vão dizer que ditaduras são inevitáveis, irão justificar linchamentos, aplaudirão esquadrões da morte. E nem se darão conta de que, assim, vivem presas ao medo.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 03/10/2012.

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