sexta-feira, 14 de maio de 2010

Racismo e outras "coisas de jogo"

Ontem foi dia 13 de maio. Comemorou-se os 122 anos de assinatura da Lei Áurea, quando foi abolida a escravidão no Brasil. Há quem minimize a importância dessa data como marco da luta dos negros pela liberdade, pela conquista de direitos iguais e contra o racismo. Há quem prefira o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, quando se comemora o “dia da consciência negra”. A importância do negro na sociedade brasileira deve ser destacada todos os dias, assim como sua luta por dignidade e respeito.

A propósito, há pouco tempo ocorreu um episódio de racismo no futebol brasileiro – mais um! Em partida realizada pela Copa do Brasil entre Palmeiras e Atlético Paranaense, uma cena acabou se destacando mais do que a peleja em si. O zagueiro palmeirense Danilo, após uma cobrança de escanteio, entrou em atrito com o zagueiro atleticano Manoel. Este ameaçou lhe dar uma cabeçada, ao que Danilo reagiu cuspindo e chamando Manoel de “macaco”. As hostilidades recíprocas prosseguiram por todo o jogo – Manoel chegou a pisar em Danilo quando este estava caído –, e foi além. Após a partida, o atleticano dirigiu-se a uma delegacia, onde registrou boletim de ocorrência contra o palmeirense por injúria qualificada por discriminação racial. Ambos foram denunciados no STJD, mas confesso desconhecer se houve alguma punição efetiva nos gramados e a quantas anda o caso na esfera criminal.

O que me chamou mais a atenção foram as reações. De um lado, aqueles que julgaram a atitude de Danilo como imperdoável expressão de racismo, merecedora da máxima pena. De outro, os que acharam a questão uma bobagem, muita discussão por nada ou, explorando a fauna para transitar do racismo à homofobia, uma “veadagem”. O próprio Danilo, por sua vez, definiu sua atitude como uma dessas “coisas de jogo”. Ou seja, algo normal, que acontece em qualquer partida, como os encontrões, as faltas, as reclamações com o árbitro, as vaias e cantos da torcida, as discussões ríspidas entre companheiros do mesmo time para demonstrarem sua vontade de vencer (lembram-se dos “afagos” entre Obina e Maurício, ex-companheiros de Danilo?). Enfim, “coisas do jogo” são coisas corriqueiras, normais, ordinárias, sem importância, fazem parte da vida. E ponto. Será?

A atitude de Danilo é condenável, certamente, assim como toda forma de racismo. Do mais velado ao mais escancarado. Porém, sem querer justificar, mas, sim, entender a atitude do jogador, tento focar o sentido mais profundo da sua frase. Como assim chamar um adversário negro de “macaco” é “coisa de jogo”? Quer dizer que uma afronta dessas é normal, banal?

Fundado no escravismo que vigorou por séculos no Brasil, legalmente extirpado no 13 de maio de 1888, o racismo subsiste na sociedade brasileira, donde os gramados e as arquibancadas constituem também seus espaços. Subsiste em forma e intensidade diferentes do racismo observado em outras sociedades. Nesse sentido – de estar, de alguma forma, presente – o racismo, infelizmente, é normal como a homofobia, o bullying nas escolas, a corrupção na esfera pública, a ganância dos empresários, a sonegação de impostos, e tantas outras coisas observadas com frequência indesejada, mas real. É tudo “coisa do jogo”. Mesmo que não seja aceitável.

Os preconceitos, todavia, não teriam a persistência que têm se existissem apenas nesse âmbito genérico a que denominamos ora como sociedade, ora como cultura. Têm um domicílio mais recôndito: o inconsciente dos indivíduos, o mais profundo de suas almas. Aliás, um dia após a partida, Danilo veio a público desculpar-se pela reação infeliz e alegou não ser racista. Acredito piamente que Danilo não se veja, com toda a sinceridade, como racista. Pelo menos, esse tipo de preconceito não lhe ocorre conscientemente. Mas também acredito que o racismo está nele de modo inconsciente, evidenciado pelo impulso incontrolável quando afrontado por Manoel.

Na mesma vertente pode ser entendida frase do jovem craque Neymar, em entrevista a uma rádio. A jornalista questionou-lhe se já havia sofrido preconceito racial, ao que Neymar respondeu: "Nunca. Nem dentro, nem fora do campo. Até porque não sou preto, né?". Objetivamente, é cada vez mais complicado afirmar-se desta ou daquela cor ou raça. Não obstante, Neymar não se ver como negro, enquanto muitas pessoas – a jornalista, inclusive – assim o fazem, diz muita coisa sobre os preconceitos escondidos em nós. Falando nisso, há um ótimo estudo da antropóloga Lilia Schwartz mostrando certos negros que, ao ascenderem econômica e socialmente, passaram por uma espécie de “embranquecimento” da autoimagem. Isto é, lembram-se do tempo em que eram pobre e “eram negros”.

Paradoxalmente, apesar de admitir como fato social que o racismo é “coisa de jogo”, acredito que condição fundamental para que esta e outras formas de preconceito sejam definitivamente debeladas da sociedade (utopia?) é a não aceitação, de modo veemente, de atitudes como as de Danilo. Não, não são “coisas de jogo”! As pessoas devem, sim, indignar-se quando se deparam com irrupções racistas como essa, sem o desdém cínico e confortável de taxar as críticas de “veadagem”. De qualquer forma, também devem tomar muito cuidado para controlarem nelas próprias esses impulsos discriminatórios, reveladores da necessidade de atenção íntima quanto aos próprios preconceitos, inconscientemente guardados.

Uma atitude louvável foi tomada pelo governo brasileiro e de países africanos: pediram à ONU que discuta propostas práticas para erradicar o racismo do esporte. Resolução nesse sentido foi aprovada por unanimidade no Conselho de Direitos Humanos da entidade, em Genebra. O combate ao racismo vai muito além do fair play pregado pela FIFA. É interessante como, mesmo persistindo os xingamentos nas arquibancadas – xinga-se o árbitro, ou melhor, sua mãe, xinga-se o craque adversário de tudo, especialmente de “veado” –, já vigora uma auto-contenção por parte dos torcedores, ao menos os brasileiros, em relação a insultos racistas. Infelizmente, em outros lugares tais insultos são ainda observados, causando a repulsa de todo o mundo, como no caso do Zenit, de São Petersburgo, na Rússia: seus os torcedores imitavam macacos em jogos contra adversários que tinham jogadores negros no elenco.

Encerro, aproveitando a passagem do 13 de maio para registrar a homenagem aos tantos e tantos negros que ajudaram a fazer do futebol a força que é no Brasil e no mundo. Desde o mais anônimo perna-de-pau até o Rei Pelé. E também para saudar o fato de que daqui a alguns dias assistindo a uma Copa do Mundo em plena África. Melhor: na África do Sul, de Mandela. 

JFQ

4 comentários:

  1. Sergio Augusto Nogueira30 de maio de 2010 às 12:50

    Parabéns pela matéria. Voltei por alguns minutos as discussões do Birigui Palace regado a cafezinho do Silvio e o mesmo pedindo o seu Jooorrnall. Concordo com sua visão. O futebol emana do povo e não tem como separá-lo dos reflexos da sociedade. Racismo e violência brotam dessa sociedade. Não crucifico o Danilo pelo calor da partida. Ele faz parte da nossa sociedade e em sua emoção deixou aflorar tais sentimentos. Por isso sempre devemos lembrar do dia 13 e do dia 20 não apenas nesses dias, mas sempre.

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