domingo, 4 de julho de 2010

A Vitória de Sarriá


Eu tinha dez anos. Formava com alguns amigos da rua um time, modéstia à parte, praticamente imbatível. Para aumentar ainda mais nosso potencial, estávamos fortemente influenciados pela magnífica seleção brasileira comandada por Telê Santana. O clima de Copa do Mundo era inescapável: verde e amarelo por todos os lados, camisas canarinho ostentadas com orgulho, o pavilhão nacional à mostra, seguindo, contudo, o protocolo patriótico determinado pela liturgia militar, cujo regime ainda imperava; por exemplo: bandeira brasileira pintada na camisa como se fosse uma reles estampa era quase um crime de lesa-pátria. Além disso, tinha o Naranjito, o mascote daquela Copa da Espanha, qual uma entidade onipresente: pintado nos muros, em forma de bonecos, pequenos, médios e grandes. E tinham as músicas: “Voa, canarinho”, cantada pelo Júnior, lateral do Flamengo e da própria seleção, e a do Luiz Ayrão, uma espécie de segundo hino nacional: “Dá-lhe, dá-lhe, bola/Meu canarinho vai deixar a gaiola/Vai pra Espanha de mala e viola/ Vai dar olé à espanhola/ E rola e rola e rola...”.

Em resumo, tudo cheirava a futebol, seleção brasileira e Copa do Mundo. E o escrete de Zico, Sócrates, Falcão & Cia. encantava o mundo, a ponto de não se conceber possibilidade de fracasso naquela tentativa de obter o tetra, primeiro caneco pós-Pelé. Da mesma forma, nosso timinho, cujo campo era o asfalto escaldante da rua da minha casa, também encantava os transeuntes eventuais, sortudos por poderem observar o fino da bola jogada por aqueles meninos, eu incluso.

Detalhe: cada jogador da rua correspondia a um craque da seleção, buscando imitá-lo no estilo futebolístico e nos trejeitos. Uma vez ouvi Chico Buarque dizendo na TV que ainda não jogava tão bem como Pagão, seu ídolo maior, mas já sabia copiar uma cuspidinha que o craque santista dava. Pois é o que fazíamos. As comemorações, por exemplo, fosse gol do Sócrates – o da rua, claro –, comemorava-se com postura ereta, o braço direito estendido ao céu; fosse o Zico, o seu alter ego da rua saia correndo, meio curvado para a frente, e pulava socando o ar.

Daí, quem sabe, a explicação de boa parte da excelência futebolística demonstrada por aqueles meninos. Se não éramos lá muito originais, pelo menos imitávamos gênios da bola. Eu era o Falcão: jogava no meio-campo, articulando as jogadas, chegando às vezes à frente para marcar meus golzinhos. Lembro-me que o Neimar era o Sócrates, ambos altos e esguios, e o Maurinho, salvo engano, era o Cerezo. E o Zico, quem era o Zico mesmo? Bem, o negócio é que tentávamos naquela rua reproduzir os prodígios que víamos de nossos craques em campos espanhóis. A coisa era tão séria, apesar da natureza de brincadeira, que deixávamos de assistir aos jogos, disputando, no mesmo tempo, partidas na rua. Claro que entrávamos correndo em casa para ver o gol, tão logo ouvíamos os rojões espocarem concomitantemente aos gritos que emanavam de todas as casas da vizinhança. Assim, víamos o replay do gol, e já passávamos à tarefa de repeti-lo no asfalto.

Foi assim contra a União Soviética, contra a Escócia – e não importava se saíamos perdendo, pois havia a certeza da virada –, contra a Nova Zelândia. Contra a Argentina, porém, valia o ditado dos benefícios da cautela e da canja de galinha. Afinal, tratava-se do arquirrival e então campeão do mundo, não obstante sermos nós os atuais campeões morais, incontestáveis favoritos. Foi sem perdão. Mal começou o jogo, o juiz marcou falta a uns quarenta metros do gol de Fillol. Não importava a distância, Eder enfiava o pé, e sabíamos – assim como os argentinos – que o negócio era perigoso. Não deu outra: Fillol até conseguiu rebater, mas Serginho e Zico partiram como um foguete para cima da bola, o Galinho chegou primeiro e enfiou a pelota pra dentro. Massacre só: 3 a 1, fora o baile, com direito a expulsão do Maradona. Perdeu a cabeça, coitado, atordoado com o olé brasileiro.

Aí veio a Itália, que também vencera os argentinos, mas por um gol a menos: 2 a 1. Por isso, tínhamos a vantagem do empate. Não sei para quê, se venceríamos mesmo... Foi meu primeiro encontro com os cruéis clichês do futebol: a caixinha de surpresas, o imponderável, a injustiça do jogar melhor e ainda assim perder. Sempre que o Paolo Rossi – jamais esqueceríamos esse nome, eterno vilão – marcava um gol, tínhamos a certeza de que o Brasil iria atrás e faria o redentor gol de empate. Afinal, já conhecíamos o filme, fora assim em jogos anteriores. Era até bom, dava mais emoção sair perdendo e virar o jogo. Oh, inocência de criança, virgem de desilusões! Ao primeiro gol de Rossi, Sócrates respondeu com um toque de gênio no canto de Zoff. Ao segundo, Falcão, numa angustiante espera que durou até metade do segundo tempo, enfiou o pé esquerdo e a bola foi morrer na gaveta direita do veterano goleirão italiano. Pronto, estava cumprido o script. Mas o tal do Paolo Rossi, endiabrado, marcou o terceiro e o tempo já era curto. Tudo bem, quanto mais dramática, mais gostosa a vitória. O problema é que o tempo passou, o Brasil criou algumas chances, mas o Dino Zoff – outro vilão italiano – impediu que a bola entrasse.

Quando o juiz apitou o final do jogo, senti um nó na garganta que jamais sentira por conta de futebol. Foi o primeiro grande desgosto ludopédico, o primeiro de verdade. Olhei para o meu pai e perguntei, como se as imagens da televisão não fossem o bastante: “O Brasil perdeu?” Meu pai, em silêncio – devia estar sofrendo também, do seu jeito adulto –, confirmou balançando a cabeça afirmativamente. Fiquei quieto por uns instantes, olhando a TV, vendo os jogadores da seleção saírem de campo chorando. Não convencido da eliminação, indaguei meu pai novamente: “Então, o Brasil não pode mais ser campeão?” Meu pai, com outro gesto de cabeça, confirmou a melancólica sentença.

Fiquei em silêncio por mais algum tempo. De repente, me deu vontade jogar bola na rua, como fazíamos sempre em dia de Copa. Aliás, por que nós, os meninos da rua, não estávamos jogando na hora da partida do Brasil? Bem, peguei a bola e parti. Ao abrir a porta de casa, não é que os outros já estavam lá! Todo mundo com sorriso amarelo, com um semblante fechado que expressava o constrangimento pela inesperada derrota, enlutados por sabermos que o Brasil, contra todas as nossas certezas de criança, não seria campeão na Espanha. Pior ainda para nós, que jamais víramos o Brasil ganhar uma Copa.

“Chuta a bola aqui”, gritou alguém. E logo estavam formadas as equipes, justamente Brasil x Itália, e partimos para a vingança. Esquecemos da tristeza, o luto se desfez, mas aqueles que assumiram o escrete italiano estavam inspirados pelo feito de há pouco da Azzurra contra a nossa seleção. O moleque que assumiu a condição de Paolo Rossi, coitado, estava se achando. Mas não teve pra eles, não. Fomos com tudo e nos vingamos sem pena, do nosso jeito. Ali na rua não tinha para ninguém. Só deu Brasil.

Findo o jogo da rua, voltamos a sorrir e a nos ver como os melhores do mundo. E, sem que nenhum adulto nos ensinasse, descobrimos algo muito importante: se no futebol o melhor pode perder, mesmo perdendo pode não deixar de ser o melhor. Logo, de uma forma ou de outra, são vitoriosos. O sentimento de derrota, assim, deu lugar novamente ao gosto pela vitória. Se nós, os meninos da rua que imitávamos Zico, Sócrates, Falcão & Cia. éramos imbatíveis, logo, aqueles jogadores mágicos, nossos eternos ídolos, também haviam vencido. Eram, ou melhor, são campeões. Apenas não conquistaram um torneiozinho mixuruca que, como bem disse Garrincha, não tem nem returno.

Venceram, com certeza. Pelo menos, é a lembrança que guardo desde os meus longínquos dez anos.

***

Hoje tenho 37 anos. Depois da Copa da Espanha, já vieram outros sete mundiais, incluído este de 2010. Destes, vi o Brasil ser derrotado em cinco e vencer dois. Apesar da emoção da vitória, jamais uma outra seleção brasileira me encantou como aquela de 1982. Tenho certeza que muitos outros que como eu tinham perto de 10 anos naquela época concebem o escrete de Telê como algo mágico, encantado, quase imbatível... Quase.

Será que é só uma dessas visões hipervalorizadas por virem dos tempos de infância, como os desenhos animados antigos que jamais admitimos serem pior que os de hoje? Não, neste caso, pelo menos, não. É porque aquela seleção era boa mesmo. Se não fosse, não estaria brilhando nas retinas e nas memórias de tanta gente até hoje. A propósito, como os garotos de 10 anos em 2006 ou 2010 levarão na memória de adulto as seleções brasileiras das Copas da Alemanha e da África do Sul? Guardarão o mesmo encanto em relação aos times de Parreira e Dunga que guardam os então meninos, como eu, em relação ao time de Telê? Provavelmente não.
Sem trocadilhos românticos, cuja intenção de fundo é produzir o autoengano: Acredito sinceramente que há derrotas que pairam como vitórias, e vice-versa. A chamada “tragédia de Sarriá” é um exemplo clássico. Como pode um time derrotado ser tão cultuado até hoje? Quem viu, sabe muito bem o porquê. Então, no mínimo, há que se ponderar muito as palavras para sentenciar que aquilo foi uma derrota. É muito pragmatismo numérico. É dar muita importância para números frios constantes de um placar.

Falando nisso, já pensando em 2014, quando a Copa do Mundo será no Brasil, gostaria muito que os dirigentes do nosso futebol não se preocupassem apenas com o número de estrelinhas que ostentamos acima do escudo. Sim, são importantes; são fundamentais mesmo. Mas não menos importante é o encanto que fica em cada brasileiro com o futebol jogado por seus compatriotas em campo. Dependendo da magia com que jogam, o fato de ser penta, hexa, hepta, etc., pode até ficar em segundo plano. E, cá entre nós, do mesmo jeito que jogo feio não é garantia de vitória, podemos muito bem apostar na vitória com um jogo encantador. Como o daquele time de 82, por exemplo.

JFQ

Um comentário:

  1. João, como você sabe também tinha os mesmos dez anos que você em 82. Não esqueço meu pai dizendo um dia antes da partida que o Brasil não perderia para a Itália. Eramos favoritos, ganhamos em 70 em cima deles. Eu, como qualquer garoto daquela época, acrediei em cada palavra do meu pai como verdade única. Alí tirei minha primeira lição do futebol. Futebol se ganha dentro de campo.
    Assim como você venerei e venero aquela seleção. Assim como você, ao final da partida, peguei minha bola, coloquei debaixo do braço e fui para rua vingar o Brasil. Chorei muito, mas quantos ídolos ficaram daquela copa. Desta apenas o Lúcio.
    Abçs
    Obs: O time da sua rua nunca enfrentou o da rua José Troncoso, com sede no número 90. Esse sim era o melhor(pelo menos para mim). Que saudades!!!

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