segunda-feira, 25 de abril de 2011

A funcionalidade do chute no vácuo

Jogasse nos tempos de hoje, Garrincha não seria considerado um artista, mas um expoente da falta de fair play, a ética futebolística segundo a cartilha civilizatória dos campos do Velho Continente e dos velhos cartolas da FIFA. Os joões, por sua vez, seriam o supra-sumo dos operadores da bola, carregadores de piano incapazes de tocá-lo com maestria.

Passada a patrulha sobre Neymar, recaem as acusações dos idólatras do futebol Dunga – ou, se quiserem algo mais “moderno”, do futebol Felipe Melo – sobre o “mago” Valdívia. Na falta dos pênaltis com paradinha ou dos rebolados de Edmundo, o principal exemplo de falta de fair play agora é o “chute no vácuo”. A finta, executada de sobejo pelo chileno do Palmeiras, caracteriza-se por fazer que se vai chutar a bola, chutando o vento. O joão, ou seja, o adversário a marcar Valdívia, é induzido a sair do lugar para interceptar uma bola que permanecerá inerte. Passa por bobo, é certo, mas cumpre a função essencial de vítima, necessária ao futebol arte. Exatamente igual ao adversário de Mané Garrincha quando este ameaçava correr, deixando a bola parada.

A principal acusação que recai sobre o “chute no vácuo” é que não seria objetivo, servindo tão-somente para desdenhar, humilhar, esculachar, enfim, o pobrezinho do companheiro de profissão (oh, dó!). Não obstante, mesmo se considerássemos que tudo no jogo de bola é ou deva ser objetivo, a acusação, ainda assim, é injusta. Tratando-se de objetividade, o lance de Valdívia satisfaz, pelo que contei, três funções claras e próprias do futebol.

A primeira função é tática: como em outra finta ou drible, Valdívia desvencilha-se do marcardor, ganha espaços para avançar, dar assistência a um companheiro ou mesmo chutar a gol. Mexe uma peça adversária e faz com que as peças palmeirenses abram vantagem na distribuição dos espaços no gramado.

A segunda função é psicológica: retomando – pela enésima vez – a tese do doutor Sócrates, segundo a qual o futebol é sobretudo um jogo psicológico, não comportando peças, consoante a perspectiva anterior, mas homens e suas emoções, o “chute no vácuo” faz com que o marcador, em particular, e todo o escrete adversário, em geral, perca a cabeça. Saindo do eixo, desequilibrando-se emocionalmente, é claro que a equipe de Valdívia tenderá a envolver o adversário que, ademais, tenderá a apelar para a violência e ficar com jogador(es) a menos em campo (que o diga Anderson, do Santo André).

A terceira e última função é estética: com respeito aos carregadores de piano, mas se não houvesse quem tocasse o instrumento com a primazia de um craque, o futebol seria tão empolgante quanto o rugby e Domingos, da Portuguesa, deporia Pelé do trono, assumindo ele a condição de rei.

Pelo exposto, salve o chute no vácuo, as dancinhas, os chapéus, os elásticos, os carretéis (viram o lance de Leandro Damião na partida entre Internacional e Juventude?!) e toda a sorte de demonstrações do talento ludopédico.

Termino com um pedido aos apologistas da ética do talento como inimigo do fair play: deixem o “chute no vácuo” em paz ou, se quiserem, passem a aplaudi-lo como fazem os que realmente amam o bom futebol. Sob pena de, não o fazendo, tornarem o futebol atual, já tão diminuto de grandes talentos, num verdadeiro “chute no saco”.

JFQ

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