segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Telê 1986, Felipão 2012

 
 
Em 1986 o mundo ainda vivia a Guerra Fria, em que pesem as reformas incipientes promovidas pelo então líder soviético Mikhail Gorbatchev. No Brasil, a nova democracia, sob a alcunha de “Nova República”, engatinhava, enquanto a inflação galopava: era o ano das eleições para a Assembleia Constituinte e do Plano Cruzado. No futebol, começávamos a viver o falso dilema entre “futebol-arte” e “futebol de resultados”, posto que bom número de “entendidos” passaram a defender a tese, após a tragédia de Sarriá, de que jogar bonito não levanta caneco. Nessa época, minha vida se resumia às atividades da escola e do catecismo religioso, à convivência familiar, às peladas na rua e às primeiras angústias de amor. Coisas como a prova de matemática, a prece ao meio-dia, desenvolver o chute com curva, andar a cavalo, pescar lambari, diferenciar tatu-bola de tatu-peba, e, especialmente, debelar a timidez para me aproximar da garota amada eram minhas grandes preocupações existenciais. Apesar de ser apenas um molecote pré-adolescente do interior, continuava a idolatrar o escrete canarinho de 82 e a acreditar que somente jogando bonito era possível vencer. Sem saber, eu fazia parte da esmagadora maioria – o então chamado “povo” –, cuja opinião, muitas vezes, era desqualificada pelos tais “entendidos”.
Um dos fatos marcantes de 86 foi o anúncio de Telê Santana como técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo, no México. Desde o ano anterior, um grande imbróglio marcava o futebol brasileiro. Contratado pelo clube árabe Al Ahli (apesar do nome, não é o mesmo que enfrentará o Corinthians no Mundial de Clubes), seus dirigentes não admitiam cedê-lo para a seleção brasileira, apesar do clamor popular e da pressão da CBF. Desde a seleção mágica de 82, o Brasil havia frustrado as expectativas dos torcedores com os selecionados de Carlos Alberto Parreira, Edu Coimbra e Evaristo de Macedo. Após muita pressão – houve até uma campanha, “Fica, Telê”, lançada pela Revista Placar –, o Al Ahli “emprestou” Telê apenas para a disputa das eliminatórias. Festa geral! A seleção passou sem grandes dificuldades, com atuações destacadas de Zico, Casagrande e Renato Gaúcho.
O ano da Copa começou com duas perguntas cruciais: quem sucederia Giulite Coutinho na presidência da CBF e quem seria escolhido como técnico canarinho no México. Octávio Pinto Guimarães – oposicionista e aliado de Nabi Abi Chedid, liderança em ascensão – venceu as eleições e, de certa forma, surpreendeu o país ao anunciar, pouco tempo depois, que Telê estava de volta. Eu e o chamado “povo” vibramos com o retorno. Vale dizer, uma vibração espontânea, espécie de euforia, vinda de dentro.
Em 2012 vivemos o capitalismo globalizado, o reinado das finanças, da marca, do logo, do mercado e da mercadoria; da imagem produzida no talhar do marqueteiro. Ironicamente, os dias atuais parecem confirmar a concepção do velho Marx de que, sob a égide do capital, os homens se tornam mercadorias e estas ganham personalidade. O Brasil tem uma democracia consolidada e uma economia estável e emergente, noves fora a discordância das imortais Carlotas Joaquinas e o persistente, muito embora combalido, complexo de vira-latas: a Constituição de 88 é uma conquista nacional inegável, bem como nossa moeda, o Real. Hoje sou um quarentão, graduado e pós-graduado, vacinado, concursado, casado (sem papel passado), quase pai e habitante de metrópole. Minha grande preocupação é que o dinheiro necessário à família dure todo o mês e que meu guri nasça e cresça com saúde. No âmbito ludopédico, mantive a coerência: continuo a associar futebol bonito a bons resultados. Graças aos deuses da bola, tenho hoje – enfim! – um paradigma a corroborar minha tese: o Barça de Messi, Xavi e Iniesta.
No começo de 2012 uma notícia improvável correu os jornais: Ricardo Teixeira, presidente da CBF desde o fim da gestão Octávio Pinto Guimarães, deixava o cargo. No seu lugar entrou José Maria Marin, o vice com o dom de surgir do nada. Entrou e tardou a impor sua vontade de demitir o técnico Mano Menezes. Quando o fez, a sensação de ação inoportuna foi inevitável: afinal, passados dois anos, Mano parecia dar mostras de ter encontrado um caminho interessante. No entanto, sua permanência não era do gosto de Marin; dizem as más línguas, descontentamento compartilhado com a FIFA, com os patrocinadores, com os marqueteiros, com Romário, com a Rede Globo e, vejam só, com o “povo”. Se bem que, nestes tempos, o nome “povo” caiu em desuso. Melhor dizê-lo no jargão da moda, a estatística: Luiz Felipe Scolari entra com aprovação de 54% dos brasileiros. Melhor assim: sendo Felipão e Parreira, o “novo” coordenador técnico, figuras conhecidas do mercado, quer dizer, do povo, facilita muito as vendas, quer dizer, as coisas. Por falar em povo e em Parreira, é curioso ver alguém que antes, como técnico da seleção, tratava as críticas populares como “caixa de ressonância” dos comentaristas esportivos, agora, na condição de coordenador técnico, clamando o mesmo povo (o mesmo?) a apoiar o selecionado canarinho. Parreira deve ter entendido a mecânica da coisa – se o povo era manipulado pelos críticos, pode bem ser manipulado pelos ufanistas –, passando de vítima a operador do vox populi.
A imagem vitoriosa de ambos – campeões das Copas de 94 e 2002 – ajuda a manipular, quer dizer, seduzir a torcida nacional no melhor clima “pra frente Brasil, salve a seleção”. A mesma torcida que, segundo Galvão Bueno, tem um caso de amor com a amarelinha. Como se não bastasse, Felipão e Parreira têm visões táticas modernas, apesar de suas maiores conquistas já distarem longa data. Ainda assim – talvez a culpa seja da idade –, confesso que passei longe de sentir com o retorno de Felipão o entusiasmo do retorno de Telê. Na verdade, não vejo nenhum treinador no Brasil muito melhor do que Mano, mormente um cujo último time acabou rebaixado no Brasileirão. De qualquer forma, o importante é que, para a felicidade geral da nação e dos bons negócios, o “povo” deu seu aval (ou, quem sabe, deram por ele), por mais que essa aprovação não reflita a convicção nas qualidades atuais do “professor”, mas, acima de tudo, a desaprovação com o trabalho anterior, a falta de opções conhecidas e a arriscadíssima aposta de que a vitória de ontem é garantia de vitória amanhã.    
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Recorrendo novamente ao velho Marx, corre-se o risco de se repetir como farsa a história antes ocorrida como tragédia. Ou não. O tempo roda e as semelhanças do hoje com o ontem, mutatis mutandis, vêm à tona. Muito embora, claro, existam diferenças importantes entre as épocas. Senão vejamos.
A “família Scolari” retorna à Granja Comary. Nos tempos em que a residência do selecionado nacional era a Toca da Raposa também havia uma família. A figura do pai, ao mesmo tempo rígido e carinhoso, que ensina pacientemente e também cobra determinado comportamento, dentro e fora do campo, é marca comum de Telê e Felipão. A propósito, vige no país certa cultura de valorizar esse tipo de relação paternal como condição necessária para o bom andamento dos times. Premissa não necessariamente comprovada na prática: se, por um lado, essa postura dos treinadores facilita a organização de um grupo de jogadores naturalmente difícil de se lidar, repleto de vaidades e arroubos de rebeldia, por outro lado, os atritos ríspidos são inevitáveis. Brigas fizeram parte da carreira dos dois treinadores não só com seus atletas, como também com dirigentes, jornalistas, torcedores e até com outros treinadores.
Se a figura do pai remete tanto a Telê como a Felipão, alguns dos princípios de conduta transmitidos aos filhos, ou melhor, aos jogadores são bem diferentes, para não dizer antagônicos. Telê não abria mão do jogo limpo, na bola, além da técnica apurada, do futebol bem jogado como meio para chegar à vitória. Perna-de-pau não tinha lugar com ele, muito menos os chegados em um pontapé na canela do adversário. Certa vez, passou uma descompostura no jogador Zé Elias, durante um programa de televisão, porque, no seu entendimento, o então volante do Corinthians era desleal com seus companheiros de profissão. Scolari, por sua vez, é um dos principais expoentes da escola gaúcha, do jogo duro, combativo, que não concebe a vitória no futebol através da beleza, mas da postura de guerreiros em uma batalha. Não é à toa que “A arte da guerra”, de Sun Tzu, foi seu livro de cabeceira durante a Copa de 2002. Além do mais, algumas das nossas tradicionais malandragens – tais como provocar o adversário ou pressionar a arbitragem –, eram repudiadas por Telê na mesma intensidade com que são incentivadas por Felipão. Em outras palavras: para Telê, futebol é jogo para artistas; para Felipão, é peleja de macho.
Daí decorre outra diferença: as opções táticas. Telê partia do princípio de que os melhores jogadores sempre devem estar em campo. Entenda-se por “melhores” aqueles com técnica mais apurada, os mais habilidosos, com mais visão de jogo, inteligência, sem abrir mão do preparo físico. Assim, seu esquema tático era montado em função de dois fatores: a presença dos melhores e a utilização dessa capacidade em um jogo envolvente e para frente. O bordão de Jô Soares – “bota ponta, Telê!” – é bastante exemplar disso. Na preparação para 1982, Telê testara alguns pontas-direitas sem se convencer de suas potencialidades (ex: Tita, do Flamengo, e Tarciso, do Grêmio). Ele próprio, um ex-ponta-direita, entendeu que a posição passava por um momento de escassez de talentos. Juntando-se a isso o fato de quatro craques do meio-campo estarem no auge – Cerezo, Zico, Falcão e Sócrates –, não teve dúvidas em fazer adaptações. Se do lado esquerdo Éder cumpria à risca a função de ponta, na direita, Sócrates preencheria o espaço eventualmente, auxiliado pelas subidas do lateral Leandro. Nas eliminatórias para a Copa de 86, a adaptação ocorreu pela esquerda: Junior, antes lateral, passou a ocupar a meia, auxiliado pelas subidas do lateral Branco; do lado direito, Renato Gaúcho era o homem de confiança, pelo menos até que o descontentamento do treinador com o comportamento extracampo determinasse sua saída. Em síntese: Telê não era refém de tradicionalismos táticos, de um esquema pré-definido, mas um estrategista que montava sua equipe usando o melhor à sua disposição, fundado no toque de bola e na ofensividade.
Ao contrário deste, Felipão não tem tanto problema em deixar dois ou três jogadores mais habilidosos no banco de reservas, além de montar seu esquema priorizando a marcação. Que o diga a saída encontrada na Copa de 2002: três zagueiros, com um deles, Edmilson, às vezes servindo como volante; nos jogos finais, além dos três zagueiros, dois volantes de fato: Gilberto Silva e Kleberson. Para compensar, contava com três craques do meio para a frente: Ronaldinho, Rivaldo e Ronaldo. Solução, a propósito, não muito diferente da encontrada por Parreira, em 94: Mauro Silva e Dunga como um paredão no meio, compensado com a movimentação de Bebeto e a presença artilheira de Romário no ataque.
Um ponto em comum: tanto Telê como Felipão apostaram suas fichas em jogadores de extrema confiança – até porque eram gênios da bola –, independentemente das dúvidas com as condições físicas. Apesar do frágil joelho, Telê não abriu mão de Zico, em 86, ainda que para entrar nos momentos finais das partidas. Apesar do joelho frágil, Felipão não abriu mão de Ronaldo, em 2002. Neste ponto, inclusive, Scolari foi até mais ousado que o “Fio de Esperança”: em 86 não havia substituto à altura para Zico; em 2002, Romário, apesar da idade, continuava artilheiro e aclamado pela torcida.
Onde a história se repete? Se na época de Telê havia deficiência na ponta – ora na direita, ora na esquerda –, hoje não há um centroavante capaz de satisfazer à maioria dos boleiros. Ironicamente, depois de Reinaldo, Careca, Romário e Ronaldo, não temos mais um grande matador; apenas bons jogadores que já foram mais convincentes em outros momentos, como Fred, Damião e Luiz Fabiano. Tanto que, quiçá sob inspiração catalã, Mano Menezes passou a testar – com relativo sucesso – um time sem centroavante, mas com volantes, meias e atacantes de beirada de área bastante rápidos e com capacidade de articulação: Paulinho, Ramirez, Oscar, Kaká, Hulk e Neymar. Confesso que sinto a falta do são-paulino Lucas nesse rol. Conclusão: assim como Telê, Mano, considerando as deficiências e potencialidades dos jogadores à sua disposição, optou por sair do esquema tradicional. A pergunta: Felipão fará o mesmo ou não abrirá mão de um atacante de área, ainda que esteja em condições inferiores a outros jogadores? Complementando: Felipão abrirá mão de um volante, pelo menos, mais firme, fixo, no meio, tirando Ramires ou Paulinho, ainda que os dois passem por grande fase? Vou além: Felipão dará a si próprio opções táticas ou fará como Dunga que, a pretexto de “comprometimento”, deixou de convocar jogadores como Ganso e Neymar para a Copa de 2010? Até que ponto a pressão da torcida e de Marin (para não falar dos patrocinadores, dos empresários, dos marqueteiros e até da FIFA) pela presença de “medalhões” no selecionado nacional não comprometerá o time e a formação de opções táticas?
Ainda que Felipão não seja uma novidade, não dá para saber como será o “novo velho” técnico da seleção brasileira. Felipão 2012 é igual a Felipão 2002? Na comparação com Telê, confesso que preferia alguém com o perfil deste. Não pela ultrapassada oposição entre futebol-arte e futebol-resultado (a respeito, vale muito a pena a leitura do ótimo artigo de Tostão: http://ludopedicas.blogspot.com.br/2012/12/a-linha-reta-nao-sonha.html ), já que arte e resultado não são características necessariamente excludentes. Que o diga a própria história do futebol brasileiro e da nossa seleção, pentacampeã mundial (resultado) e com times que encantaram pela beleza do jogo, vencendo (58, 62, 70) ou perdendo (82). Aliás, entre Telê e Felipão, seria ridículo rotular um como pé-frio e o outro como vitorioso: aquele, depois das eliminações em 82 e 86, montou o vitorioso e “artístico” time do São Paulo, campeão mundial de 92 e 93; este, depois da conquista de 2002, oscilou, a favor e contra si, bons trabalhos (seleção de Portugal), conquistas, com todo o respeito, menores (campeão do Uzbequistão e Copa do Brasil) e críticas severas (passagem fraca no Chelsea e participação na campanha palmeirense que culminou no rebaixamento). Ou seja, ambos, jogando cada qual a seu modo, ganhou e perdeu, como ocorre na carreira de todo bom técnico.
Pelo que se vê hoje, a última participação de Felipão no Palmeiras, em que pese a evidente limitação técnica do elenco, foi de uma pobreza tática atroz. Como diz Paulo Vinícius Coelho, o time jogava como equipe de futebol americano, buscando ganhar jardas até um determinado ponto onde Marcos Assunção pudesse atuar, ora como “kicker” (chutando direto a gol), ora como “quarterback” (lançando a bola na cabeça de um companheiro). Também pela observação do momento atual, a equipe mais eficiente na obtenção dos resultados e que, ao mesmo tempo, encanta a todos os que apreciam o futebol bonito (claro, também considerando a qualidade do elenco) é o Barcelona. Aí é que está: o Telê de hoje – e já o disse antes – responde pelo nome de Pep Guardiola. E tivemos a chance de escolhê-lo...
Bem, essa é uma opinião pessoal. Quiçá, de uma pessoa ultrapassada, sem a plena noção das tantas mudanças ocorridas de 1986 para cá.  Afinal, naquela época o capitalismo era uma das possibilidades, envolto no mantra da eficiência do mercado e na satisfação das vontades das pessoas; hoje, é um consenso, guiado pelo marketing de tudo e todos, criador de imagens e vontades outrora inexistentes. Lá atrás, o conjunto dessas pessoas era chamado de povo, uma entidade, no Brasil, pré-cidadã, a dar os primeiros passos na conquista de direitos; hoje, apesar de direitos conquistados (sobretudo no papel e no discurso), é vista mais como um conjunto de consumidores em ascensão do que propriamente de cidadãos. Antes, ter reconhecido talento para treinar ou jogar bola eram condições suficientes para um técnico ou um jogador vestirem a camisa amarela; hoje, a isso é necessário aliar o carisma junto a torcedores-consumidores, exigência das redes de transmissão e demais patrocinadores. Na penúltima década do século XX, tatu-bola e tatu-pepa eram diferentes, mas ambos brasileiros; no século XXI, cedemos ao concurso fuleco (ops!) para, entre amijubis e zuzecos, enriquecer ainda mais a FIFA, detentora de direitos de comercialização de nosso (nosso?) mascote. Enfim, apesar da FIFA e da CBF que, elas sim, mantiveram sua essência (infelizmente!), é evidente que o mundo mudou, a economia mudou, o futebol mudou, o povo mudou, o tatu mudou e, olhando bem para o espelho, não consigo me lembrar desses cabelos brancos.
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Sobre Telê Santana
Duas dicas para quem quer saber mais sobre o mestre Telê. Sobre a campanha “Fica, Telê!”, capitaneada pela Revista Placar, em 1985, eis o link para acessar matéria publicada:
Para conhecer um pouco mais da vida desse grande treinador, recomendo o livro “Fio de Esperança”, de André Ribeiro, publicado pela editora Cia. dos Livros.
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Sarriá, o Olímpico e a tristeza
 
 
Partidas históricas da seleção brasileira de Telê Santana ocorreram no estádio Sarriá, em Barcelona. Luiz Felipe Scolari consagrou-se à frente do Grêmio, contabilizando vitórias no estádio Olímpico, em Porto Alegre. Justamente esses estádios – em 1982 e em 2007 – foram os palcos das minhas maiores tristezas com o futebol. O Olímpico, daqui a pouco, virá abaixo. Sarriá já não existe mais. Tampouco as minhas tristezas.
 
JFQ

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto fabuloso. Tive a honra de ver as seleções de 82 e 86. Cada uma, à sua maneira, inesquecível. E ambas muito distantes do futebol previsível e burocrático que hoje se pratica pelo mundo. Grande abraço.

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